Mana chegou ao pé de baobá e sentou numa raiz que saía e voltava na terra, formando um banquinho natural. Abriu a bolsa de pano que sempre carregava procurando algo. Era o que Mana costumava fazer sempre que visitava um Mocambo. Enquanto as crianças, como de costume, se juntavam em volta do Baobá, Mana arrumava no chão o que carregava da sua última viagem.
As crianças começaram logo a ficar curiosas, "o que é isso?!", "pode comer?", "é pro Mocambo?"... E Mana.. "Isso, se chama chocolate, podem comer, é de cacau orgânico que resistiu aos vírus transgênicos.. ". Enquanto falava, a Mucua que Mana tinha encostado no Baobá, começava a projetar imagens do Mocambo Terra Vista. Uma criança que estava na roda pegou uma vareta de madeira e usou para interagir com as imagens do Baobáxia. De repente um vídeo apareceu contando a história das Sementes Organicamente Resistentes, SOR. Quando os vírus transgênicos começaram a se espalhar, sobreviveram somente as plantas nos Mocambos guardiães das SOR, onde as sementes orgânicas mais resistentes eram multiplicadas.
As crianças ficaram extasiadas com a descoberta do chocolate e registraram o momento no Abdias, Mucua da Tainã. Mana seguiu contando histórias por um tempo, com a ajuda da sua mucua, que enquanto isso sincronizava com a mucua Abdias e recebia as novas informações do Mocambo:
"Recados para Mana: Tem uma bolsa para você no Ateliê. Se puder, leve para o seu Mocambo. Ah.. Conseguiu trazer aquelas sementes e o tambor que estavam no Navio Mercado Sul? Qualquer coisa, pode deixar no espaço de troca. Boa viagem pela Rota dos Baobás, Asé!"
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Este conto vem de um futuro possível. O Brasil é berço de povos tradicionais indígenas e afrodescendentes, que resistem há séculos à devastação trazida antes pelo colonialismo, e hoje, pelo capitalismo global. Além do desafio de enfrentar essa poderosa maquina, esses povos compartilham cosmovisões e culturas de pertencimento, e manejo da natureza, resguardando valores comunitários muito importantes e raros no mundo colonizado de hoje.
A luta e a resistência, partindo da questão fundiária e de garantia da posse da terra, se enraíza nas ancestralidades e identidades culturais que permitiram através dos séculos, além de preservar a terra, manter e desenvolver os próprios territórios culturais. A Rede Mocambos nasce neste contexto com a proposta de unir as comunidades, fortalecendo a comunicação, por meio das tecnologias ancestrais e das novas possibilidades do mundo digital.
Neste sentido, a Casa de Cultura Tainã, promotora da Rede, já vinha se aproximando do Software Livre e do movimento pela liberdade do conhecimento, que, na ultima década, conseguiu alcançar novos espaços no Brasil, graças às lutas dos movimentos e à conquista de mais investimentos públicos, como o programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura.
A ideia de compartilhar, trazida pelo movimento do software livre, se encontra naturalmente com as práticas tradicionais de vida comunitárias e cria novos territórios culturais de experimentação e produção. Os elementos simbólicos e transcendentais são fortemente presentes nesses territórios, onde outras dimensões são cultuadas e preservadas, com a dedicação das/os pajés, curandeiras/os, babas e ialorixás.
As comunidades da Rede vêm se juntando também de forma transcendental pela Rota do Baobás, plantando, com rituais próprios de cada lugar, e evocando a luta por um território livre, mudas da árvore africana que representa um elo com o passado e o futuro. Na Rota, tecnologias xamânicas tradicionais, como tambores e maracas, são usados para transcender para outras dimensões.
Com a chegada da dimensão digital, cientes das novas possibilidades, buscamos criar uma relação cultural e tecnológica que nos respeite e represente. A Rede Mocambos, desde seus primórdios, tem promovido oficinas de tecnologia livre com foco na produção audiovisual. Veio se delinear a necessidade de melhorar a preservação e o compartilhamento das memórias digitais produzidas já há algum tempo pelas comunidades, e em conversas, durante os encontros da Rede, em que aprofundamos este argumento, esboçando um projeto ao qual chamamos de Tambores, Acervos e Comunicação.
Por outro lado, começava a experimentação de uma solução técnica que casasse com os requisitos comuns, tais quais a possibilidade de funcionar sem conexão e/ou com infraestruturas precária. Neste sentido, foi inspirador o sistema de pontes rádios usadas por algumas comunidades quilombolas de Oriximiná, no Oeste do Pará. Os quilombolas se encontravam todos os dias, nas estações de rádio base das comunidades, para receber e reencaminhar as mensagens, até chegar às comunidades mais remotas.
Baobáxia nasce dessas experiências e pesquisas, propondo uma tecnologia que dialogue com as culturas e práticas tradicionais e que aproxime de forma respeitosa às possibilidades do mundo digital. Baobáxia é um neologismo derivante da "Galaxia de Baobás" já que a tecnologia propõe interligar as memórias de diferentes comunidades. Os nós da rede Baobáxia, são chamados Mucuas, nome do fruto do Baobá, no lugar de "server", nome comum usado nas redes de computadores. Esses frutos mantém as sementes, as memórias digitais. A simbologia além de respeitar e dialogar com o contexto ajuda a definir o tipo de relação que buscamos. Plantar mucuas no lugar de instalar server, ou seja, entender a relação com a máquina da mesma forma que as comunidades tradicionais se relacionam com as plantas. Cuidar para colher os frutos, para compartilhar as sementes, no lugar de escravizar para obter lucros.
Vince NPDD Casa de Cultura Tainã / Rede Mocambos