Dizem que é loucura: entre os dias 28 e 29 de Agosto a Casa de Cultura Tainã debate os rumos da ciência no Brasil

Com a visita de Maria Augusta, diretora do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio/CNPEM) e o plantio do Pau Brasil e Obi no Campus 1 da PUCC, a Casa de Cultura Tainã tem provocado reflexões a respeito do mundo que queremos e como percebemos a ciência nessa construção.

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Sempre quando pensamos na palavra “ciência” nos deparamos com imagens de pessoas indo ao laboratório, manipulando microscópios ou programando códigos de computador. De fato são algumas das maneiras de praticar ciência, mas, se nos aprofundarmos mais na história do povo que compõe o DNA do Brasil, poderíamos entender essa palavra de uma maneira diferente da aplicada no nosso dia-a-dia. Entendemos que aquele chá que nossa avó fazia quando estávamos resfriados é bem mais do que uma possibilidade de acalmar a tosse, é também medicina e não qualquer medicina- é uma medicina ancestral. Ela envolve afeto e isso traz efeito para nosso corpo que o pensamento acadêmico tradicional ainda não deu conta de traduzir.

Desde as primeiras sociedades em África, são milhares de anos cultivando maneiras de lidar com o mundo através da tradição. Passados de geração em geração, esses conhecimentos construíram obras de engenharia que não temos mais compreensão, mas que certamente nos apontavam para algo mais próspero do que construir bombas.

Foi dentro dessa mesma lógica que recebemos na última quinta-feira (28) Maria Augusta Arruda, ou Guta, como ela mesmo se apresentou a nós. Uma irmã que conhecemos a pouco mais de 6 meses através do baobá que plantamos em 2014 no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), onde Guta é diretora do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio). Em ambos os encontros pudemos notar uma coisa em comum, os dois lugares são solos férteis na produção de saberes e tecnologias que podem auxiliar nosso bem viver, então como podemos unir nossas forças pra construir um mundo mais do nosso jeito?

Nossa vivência no território foi encantada por risadas e memórias de sua terra natal, o Rio de Janeiro, passando pelos espaços da casa, cada um evocando muitas histórias relembradas por TC e recontadas pelos jovens do território. Das conversas, a saúde mental foi o assunto principal, onde houve muitas reflexões acerca em como a história, a nossa história, ou seja, a do povo negro influencia diretamente na nossa saúde mental, seja por conta das mazelas da colonização ou pelas nossas tecnologias de cura, precisamos todos olhar para a psicologia preta.

Durante o encontro, paramos na horta comunitária enquanto alguns parceiros do CECCO Toninha – Centro de Convivência e Cooperativa, que carrega o nome de uma das fundadora da Casa Tainã – trabalhavam nos canteiros de hortaliças e ervas medicinais. Aquela cena carregada de símbolos e de uma longa trajetória de luta se conectaram com a história da família de Guta, na qual sua própria mãe foi uma das médicas responsáveis pelos cuidados de Bispo do Rosário, um artista negro tido como louco pela psiquiatria tradicional e condenado ao regime manicomial. Bispo se tornou ícone da luta por condições dignas e cuidados humanizados a saúde mental no Brasil. As reflexões acerca dessa luta são muitas, como a homenagem da escola de samba da comunidade, a Rosa de Prata, que em 2002 montou o samba-enredo “Loucos pela arte” em reverência a essa luta e nosso representante Bispo.

É arte dizem que é loucura

Ai que beleza se o mundo fosse assim [...]

Costurou realidade com os frágeis fios da razão

De uma cela fez seu mundo como um beija-flor

Tecendo luas e sonhos de crepom

Trecho do tema enredo da GCRES Rosa de Prata de 2002 composto por TC, Miró e Paraguai

A visita de Guta aconteceu em um momento que estamos articulando trabalhos que conectam diferentes territórios e ciências pela valorização de saberes fitoterápicos, das sementes crioulas e da agroecologia. O laboratório que ela trabalha tem como foco as pesquisas em biologia integrativa, que compreende a vida de modo transdisciplinar conectando diferentes níveis de organização biológica, desde a molecular aos ecossistemas e tem como propósito o desenvolvimento de ações e tecnologias de enfrentamento aos desafios da saúde pública. Repensar a política de saúde pública: é nessa direção que o laboratório e a Tainã estão confluindo.

A partir disso, Guta também nos convidou para contribuir com a elaboração de um plano de ação .nós para ser defendido e referenciado na construção do Mutirão Global pelo Clima na COP30, que ela está representando, de modo que possamos compartilhar nossa caminhada, métodos de ação e perspectiva política para trazer essa noção ampliada de cuidado. A ideia do Mutirão conflui com a caminhada da Tainã e da Rede Mocambos porque vislumbra uma rede de solidariedade planetária, uma política descentralizada, colaborativa e construída a partir dos territórios.

“Eu acho que o Mutirão Global pode se tornar um legado importante da COP 30 por propor um jeito diferente de pensar o mundo, sem hierarquia, baseado na cooperação das múltiplas inteligências, das múltiplas habilidades, do poder do coletivo, que é algo que a gente não vê nesse tipo de cop e é o que obras como a Tainã já vive todo dia. (…) Então o que eu fico pensando não é que eu preciso estar em Belém, mas precisamos lutar contra a gentrificação dessa agenda e ter organizações que vivem isso sendo catapultados para poder atingir mais pessoas.” – Guta

Na nossa caminhada, a Tainã foi ponta de lança pela luta antimanicomial, e as memórias dessa luta se mantêm vivas de diferentes formas pelo território. Uma delas, a cabeça de Bispo do Rosário, construída com papel maché pelo artista moçambicano Makolwa Munguambe, e que desfilou no carnaval de 2002 acompanhada desse mesmo samba enredo, foi movida para o centro do auditório um dia antes, sem pretensões, que mais tarde se mostrou essencial para evocarmos a loucura necessária para sonhar, criar e viver dias mais bonitos.

Pau Brasil e Obi enraizados na PUC Campinas: O Brasil que nós queremos.

No dia seguinte (29) ainda mantinha o clima de boas provocações. Deixamos semanas antes, um presente à PUCC na mão do reitor Germano Rigacci Júnior para que, juntos com o Centro de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros Dra. Nicéa Quintino Amauro (CEAAB-PUC-Campinas) e sua coordenadora comendadora Edna Lourenço pudéssemos celebrar a vida e discutir o Brasil que queremos para o nosso futuro. Próximo a um vistoso baobá que plantamos em homenagem à Maria Aparecida Quintino Amauro, conhecida como Cidinha -mulher negra, que junto com sua filha Dra. Nicéa, fizeram frente no movimento negro de Campinas – estava um jovem Pau Brasil e uma cova rodeada por tambores.

Diante de muitas pessoas, entre elas alunos, professores, integrantes do movimento negro e de casas de matriz africana, podemos presenciar as solenidades do evento, que na nossa visão ancestral são feitas com dança, canto e tambor e juntos também as fizemos! Foi através desse respeito mútuo que TC Silva deixou na mão do reitor e da comendadora a Carta de Extensão Comunitária pra dizer que nós somos e nós podemos construir parcerias que reverberem nas políticas públicas no nosso país.

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Também plantamos um pé de Obi, conhecido também como nós-de-cola. O Obi é um fruto sagrado essencial em rituais de terreiro. É uma tecnologia de comunicação ancestral, um oráculo, que nos permite fazer a leitura de Ifá e nos comunicar com o mundo espiritual. Onde tem Obi, é cultivada a alegria, prosperidade e harmonia espiritual. Além disso, seu fruto pode ser alimento e tem propriedades medicinais como estimulante, sendo utilizado para ajudar a tratar a má circulação sanguínea ou para auxiliar na recuperação de outras enfermidades. Para nós, o Obi é uma tecnologia que produz saúde, pois tanto em um plano espiritual como biológico, o Obi é uma planta de cura.

E ao som batucada e o canto que invoca nossa ancestralidade plantamos o Pau Brasil e o Obi, espalhando nossas sementes dos quilombos e aldeias para enraizar uma ciência ancestral também nas universidades.

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Isso é o que estamos propondo como saúde: é mais que pensar a sobrevivência, é sobre poder sonhar e nos reconectar com quem somos. Para isso é necessário descolonizar a mente e o nosso ambiente, é preciso pensar o cuidado como política, mas sobretudo, é fazer isso juntos.

Reunir pessoas com o intuito de dar vida à esses conhecimentos é entendê-los em seu princípio ancestral: o do cuidado em comunidade. Foi preciso muitas mãos para construir a réplica do manto de Bispo do Rosário, parte da celebração da Rosa de Prata em 2002. Bordados, colagens, desenhos e escritos foram criados de mão em mão, na passagem do manto por vários centros de saúde mental de Campinas até ser finalizado.

Foi nessa costura, à luz do encantado Bispo do Rosário que a visita de Guta e o plantio na PUC se fizeram momentos de muito afeto e de sonhar junto, a buscar uma maneira mais africana, e mais .nós, de lidar com a ciência. Firmamos assim que queremos construir junto com a PUC e com o LNBIO, linhas de pesquisa e ações de extensão comunitária, que tragam modos ancestrais e comunitários de fazer ciência e tecnologia para confluir e compartilhar nossos conhecimentos e recursos.

“Vocês têm recursos lá que a gente não tem, e nós temos recursos aqui que vocês não têm. Somos livres pra poder sonhar e decidir o que queremos para nós, isso é um recurso fundamental para a vida. Podemos trocar recursos, e quando dizemos isso não é sobre dinheiro, é sobre compartilhar o que temos.” – TC

Compartilhada com nós, a palavra mutirão é uma palavra que vem de mutyrõ do tupi-guarani, sem tradução para outras línguas e que está levando o legado de um jeito mais comunitário, de construção de um bem viver, da experiência dos povos originários de Pindorama para reverberar uma política de ação solidária para o enfrentamento global da emergência climática. E é nessa perspectiva que, sonhando desde o quilombo, com os territórios, estamos construindo um futuro ancestral.

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Os encontros foram transmitidos ao vivo em nossa TV comunitária e podem ser assistidos em TV.TAINA.NET.BR na seção gravações.